Genes para copiar, colar, adicionar ou deletar

Julio Lamas
8 min readApr 17, 2021

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A edição genética nos traz a capacidade de mudar para melhor o mundo como o conhecemos, mas as possíveis consequências disso são de deixar Darwin de cabelo em pé

Em termos econômicos e industriais, mais imediatos como os que se buscavam no início da edição genética nos anos 70, as aplicações são quase infinitas hoje

Obs.: Este texto foi um exercício para uma seleção curiosa e fracassada para a Superinteressante, em 2019, se não me engano. Não deu em nada, óbvio, mas ficou muito legal, na minha opinião.

Você pode ter ouvido falar que um dos lançamentos mais interessantes para videogame em 2019 é “Ancestors: The Humankind Odyssey”, uma produção dos mesmos criadores da série “Assassin ‘s Creed”. Neste jogo, que rapidamente ganhou atenção da crítica especializada e do público nas redes sociais, o objetivo é grandioso e complexo: controlar os ancestrais macacos que dão origem aos primeiros hominídeos rumo à evolução da espécie milhões de anos atrás. Através de interações repetitivas com a natureza e com a própria organização social rudimentar dos macacos, o jogador lentamente leva seu clã por importantes estágios evolucionários como manipular ferramentas, desenvolver tolerância ao consumo de carne, andar ereto e controlar até mesmo o medo instintivo da noite. Por uma lógica de erro e acerto, as principais características vão sendo passadas para frente ou perdidas de geração em geração, conforme a necessidade de adaptação, pela regra infalível da seleção natural, igual àquela que Darwin nos ensinou.

Ironicamente, porém, enquanto milhares de jogadores ao redor do mundo quebram a cabeça durante horas para manipular ao estilo “natural” os genes de seus macacos digitais, a comunidade científica parece já ter em mãos todos os cheat codes necessários para avançar de fases na vida real e de quebra descobrir todos os easter eggs ocultos, a exemplo das curas do HIV e da malária, graças à edição do DNA. E, diferentemente dos videogames, os potenciais riscos nunca foram tão decisivos para a espécie humana, levantando questões como a eugenia e a possibilidade de extinção de ecossistemas inteiros.

Mas, antes de adentrar no debate ético e colocarmos na balança os prós e contras de reescrever códigos genéticos, é preciso entender como isso é possível e como chegamos aqui, entre escolher curar todas as doenças com base genética ou criar uma distopia digna de Aldous Huxley.

Se houve um momento em que esta Caixa de Pandora foi aberta, podemos traçá-lo ao final dos anos 90, quando dois cientistas da Danisco, uma empresa dinamarquesa de biotecnologia para alimentos, estudavam a bactéria Streptococcus thermophilus, muito utilizada na produção de iogurtes e probióticos diversos. Pensando em como aumentar a produtividade e a resistência deste organismo para a aplicação industrial, eles analisaram o seu código genético e notaram trechos de DNA cujas bases nitrogenadas — as famigeradas Adenina (A), Guanina (G), Citosina ( C) e Timina (T) — se repetiam em sequências sem função aparente. Próximas às repetições também viram regiões não codificantes, buracos no código genético da bactéria chamados de proto-espaçadores ou espaçadores de DNA. Essas curiosas porções de DNA bacteriano foram batizadas de CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), que, traduzindo da sigla em inglês, significa Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Inter Espaçadas.

Mais de uma década se passou sem se dar muita importância a esta descoberta até que em 2012 geneticistas e engenheiros evolutivos de Harvard e do MIT entenderam para o que serviam os agrupamentos genéticos CRISPR. Tratava-se de um sistema inteligente de defesa das bactérias contra vírus, fagos e plasmídeos.

Desenvolvido pela seleção natural ao longo de bilhões de anos, esse sistema consiste em um catálogo inteligente de códigos genéticos específicos, um CID-10 das bactérias, para identificação dos organismos invasores. Uma vez identificado o invasor, a bactéria libera uma proteína, chamada Cas9, que, levada por um RNA guia a um trecho genético específico do invasor, funciona como uma “tesoura” para recortar sua fita de DNA, ou seja, editar seus genes e, consequentemente, neutralizá-lo.

Não demorou muito para se ver que o sistema CRISPR/Cas9 abria para o mundo uma oportunidade de ouro. Ou seja, Ctrl+C e Ctrl+V em genes inteiros e específicos se tornou possível no clipboard da vida sem a necessidade da seleção natural, seus erros e acertos, conforme a necessidade de adaptação. O controle técnico permitido pelo CRISPR/Cas9, se tornou um trunfo na engenharia genética, uma vez que metodologias como a Recombinação Homóloga, baseada na manipulação de células-tronco, e a Nucleases Dedos de Zinco, que vulgarmente pode ser considerada uma bomba de DNA explodida às cegas nos organismos, podiam gerar resultados adversos e indesejados em grande quantidade.

Em termos econômicos e industriais, mais imediatos como os que se buscavam no início da edição genética nos anos 70, as aplicações são quase infinitas, a exemplo da criação mais célere e eficiente de alimentos transgênicos sem riscos à saúde, como desenvolvimento de amendoim antialérgico, porcos que não contraem viroses, trigo imune às pragas e, inclusive, trazer a população de espécies em extinção como atum, sardinha e arenque de volta a patamares sustentáveis.

Estamos falando de um impacto, que gerará não apenas empregos, mas também potencialmente permitir o avanço de diversas comunidades globais ameaçadas. Não à toa, a patente do CRISPR/Cas9 é avaliada em milhões de dólares e foi alvo de uma longa e intensa disputa judicial nos EUA entre cientistas entre do Instituto Max Planck, de Berlim, e o Instituto Broad, ligado às universidades de Harvard e MIT. No final, em fevereiro de 2017, os americanos ficaram com os direitos de exploração comercial da técnica.

Em outubro de 2019, o Instituto de Broad anunciou um novo avanço disruptivo na área, o Prime Editing, a “Edição de Qualidade”, na tradução do inglês. Combinando o método CRISPR/Cas9 com uma nova proteína, a transcriptase reversam, descobriram que não apenas é possível copiar e colar trechos de DNA, mas também escrevê-los do zero. Ou seja, sem precisar quebrar genes intactos ou obtê-los de organismos doadores, pode-se transferir novas sequências de qualquer tamanho a qualquer lugar específico do DNA que se deseja com menos chances de erro. Por meio deste progresso recente, os pesquisadores esperam poder no futuro corrigir 89% das cerca de 75 mil mutações genéticas que causam doenças.

Segundo David Liu, um dos engenheiros genéticos envolvidos no estudo, o Prime Editing traz uma perspectiva otimista para o tratamento de doenças graves que, mesmo com o CRISPR/Cas9, seriam muito difíceis de tratar por conta do tamanho minúsculo dos “erros” genéticos que as causam. Uma delas é a anemia falciforme, derivada de de uma mutação que torna uma única nuclease A (adenina) específica em um T (timina), o que gera má formação dos glóbulos vermelhos, essenciais para o transporte de oxigênio no corpo.

Aba de ferramentas

Se antes as técnicas estudadas para edição genética eram pouco eficazes, além de caras e demoradas, agora é como se a aba de ferramentas do Microsoft Word da natureza estivesse completamente aparente e pronta para ser utilizada no texto de 3 bilhões de letras do genoma humano. Desde 2015, quase que semanalmente, são publicadas novas pesquisas desbravando as mais variadas aplicações da edição genética e seus limites éticos e legais. Uma coisa é criar milho transgênico, ratos de laboratório imunes à obesidade ou cães super musculosos, outra é experimentar estas promissoras novas técnicas em espécimes humanos.

A preocupação de órgãos reguladores, como o FDA, a Anvisa americana, é o relativo pouco conhecimento que se tem ainda sobre as consequências e externalidades negativas que podem se originar de tratamentos baseados em edição genética. Um estudo publicado no ano passado na revista “Nature Medicine” aponta para um possível aumento do risco de câncer em pacientes. Segundo a pesquisa, as técnicas de edição poderiam selecionar células sem determinadas proteínas que barram os mecanismos cancerígenos e multiplicá-las. Este risco tem sido o suficiente para que novos estudos com humanos já sejam barrados.

Na China, por exemplo, em novembro de 2018, o mundo foi acordado para este debate, quando o pesquisador chinês He Jianku anunciou o nascimento das gêmeas Lulu e Nana, os primeiros bebês geneticamente editados do mundo e imunes ao vírus do HIV. Até então, experimentos como este, com modificação de genes, só tinham sido realizados em embriões humanos descartados, algo que já é motivo de briga na comunidade científica. A própria universidade de He, diante de críticas, prometeu investigar o tema e proibiu novas pesquisas do gênero.

Contudo, a principal questão, como apontou a revista “Science” na época do anúncio de He é onde, de fato, reside o maior perigo. Para muitos cientistas e órgãos, o limite está no tipo de célula que se propõe estudar e editar: as germinativas e as somáticas. Enquanto a edição do DNA das células somáticas, que são particulares para a formação de órgãos e tecidos, representam uma esperança para a cura de pacientes com doenças como o câncer ou a Tay-Sachs, a edição dos genes nas células germinativas, impõe a prerrogativa preocupante de mexer com seres humanos por inteiro e também com os seus descendentes.

“Mesmo se soubéssemos que o procedimento era seguro, a edição genética da linha germinativa ainda nos catapultaria diretamente para todas as controvérsias do ‘design de bebês’ e os problemas de criar um mundo onde as pessoas tentam micro gerenciar os genes de seus descendentes Não é preciso muita imaginação para temer que a edição genética possa nos trazer para uma nova era de eugenia e discriminação”, explica Eleanor Feingold, professora de genética humana da Universidade de Pittsburgh, em artigo para a o site The Conversation. Em resumo, estamos falando de um mundo sem a beleza da diversidade.

Biohacking

E, embora muita gente acredite que a ameaça se restrinja à saúde humana ou uma potencial distopia ao estilo do filme “Gattaca”, o poder da edição genética vai além quando se fala de práticas como os propulsores genéticos, a edição de genes de células germinativas em espécies inteiras com vistas ao seu controle populacional ou extinção (por exemplo, incentivando apenas o nascimento de machos). Os cenários mais discutidos hoje são a extinção dos mosquitos que propagam doenças como a malária e a dengue em países em desenvolvimento, como Burkina Faso, e a eliminação de ratos danosos às espécies nativas de pássaros. Na Nova Zelândia, onde 40% das espécies endêmicas de pássaros já sumiram e o resto está ameaçado de extinção por terem os ovos e filhotes comidos por roedores, a solução chegou a ser aventada em um plano ambiental de controle dos ratos invasores até 2050.

Mas qual seria o problema nisso? Bem, para muitos cientistas e biólogos, ainda estamos engatinhando na compreensão dos ecossistemas do nosso planeta. Da mesma maneira que pequenas alterações nos genes podem originar consequências gravíssimas, alterar o curso natural da seleção natural pode nos encaminhar para um verdadeiro apocalipse em uma reação em cadeia que afeta diversas espécies como aracnídeos, rãs, pequenos pássaros e mamíferos grandes. Quem sabe destruir o mosquito pode significar, no fim do ciclo da vida, extinguir de vez os tigres ou leões.

Um outro aspecto que também merece destaque nas novas técnicas de edição genética, como as já citadas CRISPR/Cas9 e a Prime Editing, é como elas tornaram acessíveis para qualquer um brincar com os genes. O conhecimento está disponível na internet em manuais e até em tutoriais no Youtube. Algumas empresas estão se especializando em vender amostras de DNA das mais variadas, equipamentos baratos de mapeamento genético e quites de manipulação com proteínas e agentes químicos prontos para serem utilizados na garagem de casa com o intuito de experimentar com os genes. Com isto, nasce uma nova forma de piratear o sistema em busca de tratamentos e curas, o biohacking.

Para os biohackers que se multiplicam, a chance de tomar o poder do lobby das grandes farmacêuticas e gerar qualidade de vida é uma aspiração que coloca a política e o debate ético contra a humanidade. Todavia, há quem veja nisso uma forma muito elaborada de trapacear na vida, além de se automedicar, o que já é arriscado. Muitos querem aproveitar a chance de se tornarem mais fortes, mais altos, mais magros, mais inteligentes. A competição, crucial na seleção natural, será desleal. E o que pode acontecer coloca em xeque tudo aquilo que nos faz essencialmente humanos.

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Julio Lamas

33 anos, jornalista multipremiado e consultor. Trabalha com tudo que envolve estratégia de comunicação e conteúdo. Tem também uma coluna no Fervura no Clima!